Aqui no Sul, entramos na época fria do ano, aquela em que mais apetece comer. Precisamos agora de comidas quentes, reconfortantes, de paladar aveludado. Precisamos de especiarias.
Hoje, encontrei no supermercado uma canjica de milho branco embalada a vácuo e pré-cozida a vapor. No método tradicional, o certo seria comprar a canjica in natura (grãos de milho quebradinhos), deixar de molho em água de um dia para o outro e cozinhar no leite, devagar, até os grãos se tornarem tenros. No fim do cozimento, que pode levar horas, se acrescentam açúcar, cravo, canela e leite de coco e/ou coco ralado.
Mas a fissura que a nostalgia provocou foi imperiosa. Assim que cheguei em casa, fervi o milho embalsamado com leite, leite de coco, leite condensado, cravo e canela, tirei foto e mandei ver. Comi um tigelão. Digo nostalgia porque, encomendando, minha avó Célia fazia esse prato para a gente. Era só dizer: "vó, me deu uma vontade de comer canjica..." Fazia com gosto, assim como as roscas fritas, as broas de milho, os queijos tostados e os bonequinhos de pão com erva-doce.
A canjica, Brasil acima, se chama mungunzá. Essa palavra vem do idioma africano quimbundo e significa milho cozido. Para o candomblé, é um alimento consagrado a Oxalá, o maior de todos os orixás, sincretizado com Jesus na cultura afro-brasileira. Como os alimentos de Oxalá não levam sal, a canjica é servida doce.
É difícil traçar a arqueologia desse prato na culinária da minha família. Vou arriscar um palpite. Minha avó tinha uma avó que tinha escravos. Contava ela que, quando a avó chegava em sua casa, vinha cercada de mucamas que faziam todo o serviço, pois ela queria a nora disponível para "prosear". Sabe-se lá que misturas aconteceram nessa cozinha, lá em São Francisco de Assis, antigo interior de Santiago do Boqueirão, próximo à fronteira com a Argentina! Incrédula, muito teimei com ela que a abolição da escravatura era coisa ocorrida em 1888, como poderia haver escravos em 1920? E não faz nem um mês que o Ministério Público autuou madeireiras de Encruzilhada do Sul, aonde trabalho, por empregarem mão-de-obra escrava...
A canela que usei não é a canela verdadeira (Cinnamomum zeylanicum), mas a cássia (Cinammomum cassia) ou canela-da-china. Usei porque ganhei umas quantas lascas da minha vizinha, que tem uma árvore no quintal. O certo para esse doce seria usar a verdadeira. A cássia assenta melhor com assados e marinadas salgadas. Contudo, não estimulo preconceitos contra a cássia, pois é especiaria conhecida há meros... 5000 anos! Comerciantes árabes do século XIV iam longe buscá-la, chegavam até as praias da "Ilha de Champã", hoje não mais uma ilha, e sim o país Vietnã.
Canjica or mungunzá is a Brazilian sweet dish of African influence. Its name comes from the quimbundo language and means "cooked corn". It is offered in Candomble rituals to the greatest of all gods, Oxala. Oxala's food must be salt free and so is mungunzá. Corn grain soaks in water overnight and is long, gently cooked in milk, until tender. Then it is sweetened with cane sugar and flavoured with cinnamom, clove and coconut milk. I wonder with whom my grandmother learned to cook mungunzá. I recall one of her own childhood memories, in which her grandmother would pay her mother a visit and bring slaves to do the housework. Slavery was officially abolished in Brazil in 1888, but law enforcement has recently found slave labour in Encruzilhada do Sul, one of the cities in which I work. Old habits die hard, unfortunately.
Another old habit, but this time a good one, is the use of cassia (Cinammomum cassia) as a spice. Long known and well beloved by the Chinese, this "false" cinammom classically suits meat dishes and marinades. I used it in my mungunza because I got some from my neighbour. She has a marvellous cassia tree in her backyard. Much farther went the arabian merchants when searching for their cassia: in the 14th century, the best cassia you could get came from the Champan Isle, nowadays known as Vietnam.
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